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Entre a Vinha e a Biblioteca

Entre a Vinha e a Biblioteca

A Folha em Branco

 

A folha estava novamente em branco; a caneta teimava em não escrever.

Olhava para todo o lado à procura de inspiração; nem a chuva a bater na janela ajudava. A luz do candeeiro estava perfeita, o quarto estava arrumado e até tinha um maço por abrir. Estava no paraíso de qualquer escritor, pelo menos, achava eu no meu imaginário. Só faltava um copo de tinto, e foi isso que fui tratar.

Na sala, estava a minha mãe com as amigas dela. Estavam no clube de leitura delas, que, neste caso, mais parecia uma prova de vinhos. Na mesa, havia mais garrafas do que pessoas, imensos queijos e, entre risadas e leituras, lá estavam elas no seu paraíso. O livro era O Velho e o Mar, um clássico. Mas eu não podia estar ali; na minha cabeça, só pensava que tinha de voltar para o meu suposto paraíso. A Célia disse:

— Pedro, senta-te aqui ao meu lado, prova este vinho.

Após alguma consideração, aceitei. Afinal, se precisava de inspiração, acho que é um grupo de leitura com seis mulheres de meia-idade que a ia buscar.

O vinho que me foi oferecido a provar era um Corte de Cima, o homenagem ao Hans Christian Andersen. Ela disse que eu ia adorar, e a minha mãe concordou. Elas já estavam muito animadas; o objetivo delas já era conseguirem ler duas linhas do livro sem terem um ataque de riso. Só digo uma coisa: hilariante. Naquela sala havia muita vida, muitos risos, muito vinho e pouca leitura. O meu pai estava com os maridos delas; disseram que também iam para o clube de leitura, que era num bar de snooker ali no fundo da rua.

Enquanto a Célia me servia, disse-me:

— Sabes o que era giro, Pedro? Pode ser que um dia seja um livro teu que estejamos aqui a ler.

Soltei um sorriso e respondi:

— Coitadas de vocês! Passar de um Hemingway para uma coisa escrita por mim é uma grande queda, e isso, na vossa idade, é um perigo! Elas riram-se.

Chegou a hora de provar o vinho. Balancei-o no copo antes de o provar, levei-o ao nariz e, finalmente, dei um golo. E digo que aqueceu muito bem a voz e, logo de seguida, o corpo. Senti uma calma dentro de mim, no meio do barulho. Ali estava eu, em paz.

Que belo vinho. Uma sensação única de sabor, bastante complexo, mas com uma bela suavidade e equilíbrio. O copo esvaziava-se rápido, mas voltava a ser enchido com a mesma rapidez. E assim foi durante as horas seguintes.

Hoje era dia de acabar o livro; faltavam só duas páginas. Como eu era o mais sóbrio delas todas, fui encarregado de conduzir este caminho até ao final do livro. E lá o fiz. Coloquei bem a voz e comecei a ler. Já no fim, antes de dizer a última frase, dei mais um golo no vinho e disse a frase que faltava:

— “E o velho sonhava com leões.”

E fechei o livro.

E foi assim que acabou esta edição deste belo clube de leitura, porque, logo de seguida, entraram eles com as bochechas tão vermelhas como as delas. Naquela sala havia ainda mais vida e animação, uma harmonia de amizade. Ficaram todos para jantar. Fomos buscar frango assado e abriram-se mais algumas garrafas de vinho. O dia tinha passado assim, e eu só tinha ido buscar um copo.

Quando voltei para o quarto, a folha continuava em branco. Achava que ia chegar e o texto estaria feito, mas nada disso. Sentei-me e estava pronto para escrever. O texto está longe de ser uma obra-prima; aliás, é este que estão a ler agora mesmo. No entanto, fiquei bastante motivado para o futuro, porque, se um dia um livro meu estiver a ser lido neste belo clube de leitura, aí sim vou dizer que encontrei o meu paraíso.

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